Monday, June 30, 2003

3.

“ Somos todos escravos. “
As paredes brancas confundem-se com a luz projectada na cara. As mãos entrelaçadas, como uma só, sobre a barriga. O pescoço relaxa. A cabeça no apoio, pesa. Boca aberta. Bem aberta. O metal remexe entre o cheiro a borracha das luvas.
O dentista.
“ Somos todos escravos. Estamos à mercê. “ O que resta de um dente. Só um bocado da raíz. E parte-se. E parte-se mais uma vez. Está difícil. A gengiva parece querer sugar os restos. O metal escava e escavaca. A dor sobrepõe-se ligeiramente à anestesia.
“ Somos todos escravos. Confundimos bem- estar com anestesia. Liberdade com assepsia das luvas do dentista. “ A dor é grossa. Pastosa. Alastra pelo maxilar superior. Até aos olhos. O tédio. O fastio depressa chega. “ Mais vale procurar a dor. Detectá-la. Afiná-la. “
Ei-la! “ Não quero perdê-la... “
- Cá está! Era esta coisinha pequenina que o incomodava – disse o dentista. Triunfante.
Somos todos escravos. Até do sucesso dos outros conseguido nas entranhas das nossas gengivas.
“ Que preguiça. “

Sunday, June 29, 2003

2.

No café.
“Não há mulheres bonitas . Só bolos.” Desalmados os pastéis alinham-se sob o balcão. Como na tropa. São todos iguais no meio da mixórdia. O café estava quente. Em breve, chegará alguma espertina. Não há nada a fazer, no café. Só olhar. Olhou firmemente as bolas de berlim e saiu. Mal sentia os pés. “Talvez tivessem ficado para trás.”

Saturday, June 28, 2003

1.

Deitou três vezes as mãos em concha à cara. Só à terceira a água fria se fez sentir na carne ainda adormecida e embalada por todos os pesadelos. O frio desceu até ao estômago. Ainda é noite e já é dia. Já é outro dia. Decisões: “É sentado na sanita, enquanto se esfrega a cara, que se tomam decisões.” Então decidiu viver mais um dia. Um de cada vez., uma cereja. Apenas mais uma cereja de um cesto cheio até mais não. Cheio até ao último dia. Até mais não ser. “E eu que só cuspo os caroços; a carne polposa das cerejas engole-a sei lá quem ou o quê.”
Riu-se do corpo. Sorriu-se da alma. “Maldito corpo. Quero é alma até aos calcanhares!” Engoliu Deus e o Diabo – com fibras e sem açúcar - e saiu de casa. Assim. Sem mais nem menos. “Não vale a pena murmurar palavrões. Que se foda.”