Tuesday, September 16, 2003

12.


Fotografias.
Fotografias antigas.
Tocou-as e deixou escorregar as mãos pelo papel duro. Mergulhou na tinta desbotada. Memória esbatida do passado.
“A tinta é presente, o papel, duro, é presente. Só a memória é passado.”
Pousou a fotografia no braço do sofá e passou a mão pela cabeça. Duas vezes. Como quem quer escorregar as mãos pela memória.
Os olhos humedeceram. Nostalgia.
“O papel. A tinta. O presente.”
Agarrou duas fotos. Quase as amarfanhou. Passou-as no scanner e viu-as no monitor.
Deixou escorregar, agora, os olhos no écran. Mergulhou na memória do passado, fugindo da tinta e do papel. Depressa sufocou.
“Que disparate! És um parvalhão! E já andas a repetir muitas vezes este insulto…”
O plástico e o vidro do monitor caíram-lhe em cima com o peso de mais de vinte e cinco anos.
Esmagaram-no.

Saturday, August 23, 2003

11.


Olho de peixe.
O olho de peixe olha o vazio.
“Olha-me.”
Olha. Negro. Morto.
No mercado.
Uns desalinhados, outros a monte, os peixes olham, focando o infinito, olham as notas e moedas que lhes passam por cima. As mãos tocam-se e o dinheiro passa.
Olhou o olho do peixe. Por detrás do olho, negro, está o peixe. Morto.
Uma criança chora. Perto. Olhou os olhos da menina.
“Os olhos dos peixes não choram. Ou choram?”
Afastou-se.
“Há qualquer coisa de sábio na escuridão dos olhos dos peixes. Mortos. Há uma luz…negra. Que sabem eles?”
Aproximou-se doutra banca.
“Vieram do mar. Há mar e mar, há ir e voltar… Que sabem eles da morte?”
Quis saber: olhou um olho de peixe. O olho do peixe.
“Vai-se. Mas da morte não se volta, palerma.”
De repente chegou um cheiro desagradável. Como um arrepio na nuca ressuscitou-lhe os sentidos.
“Queres experimentar a morte enquanto ainda experimentas a vida… És um parvalhão!”
Foi-se embora.

Wednesday, July 23, 2003

10.


E há um risco.
E há um risco, uma linha vincada entre a coxa e a bochecha do rabo.
Perfeita.
“Se eu fosse Deus, ter-te-ia feito exactamente assim. Só que te guardava para Mim, para quando, na Minha/tua perfeição, quisesse exorbitar os apelos do corpo.”
E há um risco.
No horizonte de água fria, outras topografias.
“Agora prefiro a geografia do teu corpo. Depois, se verá. Agora transbordas bordas para dentro de mim. Entumeces-me o cérebro.”
Corre calma e despreocupada a manhã de Verão. Na praia. Não há contas nem recados.
“Estou vivo! Afinal!”
Estragou tudo, no instante desta conclusão.
“Se estou vivo… já não dou conta do recado.”
Afundou-se um pouco mais na cadeira.
Deixou-se estar.

Thursday, July 17, 2003

9.


Na montra.
Vê-se para dentro e vê-se para fora.
O reflexo no vidro sobrepõe-lhe o tronco, ténue, por cima de umas botas. Pequenas. Lembrou-se das botas velhas com cordões de Van Gogh.
“Aquelas botas com alma. Aquelas onde se sobrepõe o reflexo de um bom pedaço da vida de Van Gogh. Já velhas. Já gastas. Muito.”
Deu um meio passo ao lado. Ao lado direito. Afinou o olhar e viu umas botas com tronco. O seu tronco projectado. E sem alma.
“Ridículo! Que faço aqui em frente e dentro da montra?”
Tentou voltar-se e caminhar. Não se mexeu. Todos os pesos do mundo lhe caíram em cima das pernas e desceram até aos pés. Caíram acompanhados de um estrondo e de um par de botas que o prenderam ao chão.
“Fugir! Gritar!”
Mas nada. Nada.
Sobressaltou-se.
“Que disparate. Só me faltava esta: ‘sleep paralysis’ diante de uma montra.”
Diante do seu tronco, por sobre umas botas, caminhou brandamente. Afastou-se. Prometeu a si próprio que da próxima vez, desde logo, dormiria. Dormiria para mais facilmente acordar destes pesadelos.
Bocejou. Como umas botas gastas e escancaradas pelo tempo. Bocejou.

Wednesday, July 09, 2003

8.


“Espreito por detrás dos olhos. Prisioneiro no corpo, assisto ao desvendar das coisas.”
Olhou para a mão que se movia acompanhando o lápis e percebeu que nada tinha mudado. “Nada muda. Nem por detrás dos olhos… e no entanto as unhas crescem junto à mão, junto ao lápis.”
Fez um esforço. Tentou pensar com os dedos. Com a ponta dos dedos. Desviou os olhos para o chão e deslizou a polpa dos dedos pela folha branca. Espreitou por detrás do tacto. Outra vez. E outra. “Só se esperar que me cresçam as unhas é que vou notar a diferença na folha, que o resto da mão permanece.”
Estranhou. Estranhou e arranhou a realidade como para lhe fazer saltar o verniz. Espreitou por detrás dos olhos e assistiu à imobilidade e quieta presença das coisas.
Sufocou por um segundo. Logo retomou o ar.
Respirou.
“A vida é um hábito. Nada mais. Em que momento terei começado a viver? Quando foi?"
Lembrou-se da mãe. Por detrás dos olhos.

Saturday, July 05, 2003

7.


Passa tempo. Não passa o tempo.
Tic-tac; tic- tac...
“E ainda dizem que a eternidade não tem assunto.”
Tic-tac; tic-tac...
Estender a vida. Espraiar o tempo. Olhar para o relógio. Mais nada (e nem tic-tac há no pulso do relógio).
Os ponteiros, imóveis, duram. Colam-se à eternidade.
“Colo-me à eternidade.”
Não há tempo, só ponteiros parados. Nunca um minuto foi tão longo. “Se calhar, o minuto nem sequer ‘é’... ooopssss! Mexeu-se o ponteiro dos minutos!” Foi uma seta que trespassou o tempo.
Passou o tempo.
“É inútil tentar a eternidade olhando para o relógio... Talvez tentar uma boa imitação? Talvez... Vou apenas olhar para o ponteiro das horas – mexe-se menos...”
São dez menos onze. É impossível estagnar nas horas: os ponteiros cruzam-se e o dos minutos passa por sobre as horas.
“Os minutos passam por sobre as horas. Maldito ponteiro grande! É melhor desistir. Vou fazer outra coisa para me distrair.”
Trair a eternidade é distrair.
“Já são quase dez horas.”
Quase.
Já.

Thursday, July 03, 2003

6.


"Entre a cegueira e a escuridão... o Diabo que escolha!"
No cinema.
" - Olá!"
Cruzam-se os corpos. Alinham-se nas cadeiras, para diante, entre a escuridão da sala e a cegueira da tela. No meio, sobram os olhos, cegos pela luz.
"Entre a cegueira e a escuridão, o Diabo escolheu os olhos. Cegos."
E há uma pobreza no ar e ainda mais algo que amarra os corpos às cadeiras como condenados nas galés. Remam.
"Remamos."
Num instante, iludiu-se: todos os olhos pareceram ver de dentro para fora, projectavam-se na tela. Mil vidas desfilaram diante de todos os olhos...cegos.
"Ninguém viu, quanto mais eu. Desenxabida alegoria do cinema."
Todos se levantam.
"Dizem que Deus está em toda a parte, mas cá fora é noite escura. Agora é que me dava jeito um Arrumador para me conduzir ao lugar. Mas Um que não aceite almas de gorgeta."
THE END

Wednesday, July 02, 2003

5.

Imaginou-se no deserto. Mas não. É só uma praia vazia, fora de época. Quase sem pessoas. Olhou o relógio. Dormiu meia hora misturado com a areia morna. Ainda estremunhado fez mais um esforço. "Estou no deserto". Mas não. "Estou no deserto".
Mas não. Os olhos e nariz, algemados pelo mar, arrastavam-no para a areia tatuada pelas gaivotas e para o cheiro a sal.
"Está na cara que hoje não é dia de inventar. Acho que nem sonhei".
Decidiu entregar-se, então, às coisas. "Tal como são". Olhou intensamente o desenho da pata de uma gaivota. Tão firme, que quase fixou apenas um grão de areia, logo indistinto entre milhares esculpidos.
De repente, percebeu que jamais, nunca mais, quase fixaria aquele grão de areia. Nunca... "Fazia-me falta aqui Deus para me ajudar a encontrá-lo. Sozinho, nem sou capaz de me ligar a um grão de areia".
A custo, levantou a cabeça. O mundo pareceu-lhe uma fotografia velha, já amarelecida. "É mesmo assim? Ou resta alguma luz da areia na retina?"
Bocejou. Os olhos turvaram-se.
"Mas quais coisas, tal como são, qual carapuça!"

Tuesday, July 01, 2003

4.


“Passo a vida a morrer.”
Voltou-se para trás. Surpreendeu-se com o alinhamento das árvores ao longo do passeio na avenida. Como os dias num calendário. Tão alinhados e não vão para lado nenhum. Um bocado de morte em cada dia e uma vida inteira num dia apenas. “É preciso morrer todos os dias para esperar viver, talvez, um dia.”
Pensou na mãe. Ouviu o coração saltar no pescoço. Assustou-se. Fugiu de si e quase voltou, por um instante, ao ventre. Viveu. Ou foi só uma tontura?
“É do Sol. Esta luz é traiçoeira: engana os olhos e mexe com os tímpanos.”
Abandonou-se aos zumbidos e deixou a cabeça esvaziar-se.
“Se calhar, as árvores não estão tão alinhadas como isso...”

Monday, June 30, 2003

3.

“ Somos todos escravos. “
As paredes brancas confundem-se com a luz projectada na cara. As mãos entrelaçadas, como uma só, sobre a barriga. O pescoço relaxa. A cabeça no apoio, pesa. Boca aberta. Bem aberta. O metal remexe entre o cheiro a borracha das luvas.
O dentista.
“ Somos todos escravos. Estamos à mercê. “ O que resta de um dente. Só um bocado da raíz. E parte-se. E parte-se mais uma vez. Está difícil. A gengiva parece querer sugar os restos. O metal escava e escavaca. A dor sobrepõe-se ligeiramente à anestesia.
“ Somos todos escravos. Confundimos bem- estar com anestesia. Liberdade com assepsia das luvas do dentista. “ A dor é grossa. Pastosa. Alastra pelo maxilar superior. Até aos olhos. O tédio. O fastio depressa chega. “ Mais vale procurar a dor. Detectá-la. Afiná-la. “
Ei-la! “ Não quero perdê-la... “
- Cá está! Era esta coisinha pequenina que o incomodava – disse o dentista. Triunfante.
Somos todos escravos. Até do sucesso dos outros conseguido nas entranhas das nossas gengivas.
“ Que preguiça. “

Sunday, June 29, 2003

2.

No café.
“Não há mulheres bonitas . Só bolos.” Desalmados os pastéis alinham-se sob o balcão. Como na tropa. São todos iguais no meio da mixórdia. O café estava quente. Em breve, chegará alguma espertina. Não há nada a fazer, no café. Só olhar. Olhou firmemente as bolas de berlim e saiu. Mal sentia os pés. “Talvez tivessem ficado para trás.”

Saturday, June 28, 2003

1.

Deitou três vezes as mãos em concha à cara. Só à terceira a água fria se fez sentir na carne ainda adormecida e embalada por todos os pesadelos. O frio desceu até ao estômago. Ainda é noite e já é dia. Já é outro dia. Decisões: “É sentado na sanita, enquanto se esfrega a cara, que se tomam decisões.” Então decidiu viver mais um dia. Um de cada vez., uma cereja. Apenas mais uma cereja de um cesto cheio até mais não. Cheio até ao último dia. Até mais não ser. “E eu que só cuspo os caroços; a carne polposa das cerejas engole-a sei lá quem ou o quê.”
Riu-se do corpo. Sorriu-se da alma. “Maldito corpo. Quero é alma até aos calcanhares!” Engoliu Deus e o Diabo – com fibras e sem açúcar - e saiu de casa. Assim. Sem mais nem menos. “Não vale a pena murmurar palavrões. Que se foda.”